domingo, 2 de maio de 2010

Escravos do tempo racional

“Penso, logo existo.” Essa frase proferida no séc. XVI por René Descartes traduz, em parte, o que estaria por vir nos valores e organização da sociedade nos séculos subseqüentes. O filósofo separou a idéia de mente e de corpo valorizando o racionalismo como modo de conhecimento da realidade, e isso possibilitou o surgimento da ciência e da tecnologia. O homem conheceria o mundo através da razão, e buscaria objetivar experiências através de métodos específicos e delimitados.

Isso trouxe várias conseqüências para o ser humano. Os avanços na qualidade de vida objetiva da espécie ao longo dos anos são mais fáceis de perceber como novos medicamentos, avanço da tecnologia, velocidade das informações etc. A questão é que, embora a racionalidade pudesse promover maior otimização do conhecimento e do tempo, a espécie não admitiu a importância da adaptação subjetiva nas transformações ocorridas.

Vamos pegar o exemplo do tempo. No Ocidente, o valor do tempo produtivo firmado pelo capitalismo foi tão forte que não é raro encontrar pessoas que não sabem lidar com seu tempo livre. Estar ocupado e sem tempo virou sinônimo de ser produtivo. A racionalidade foi se impondo de modo que o tempo objetivo foi se destacando em relação ao tempo subjetivo. É como se, ao fazer aquilo que a sociedade te diz que deve ser feito, o sujeito se sente tranqüilo, pois pode pensar que a vida dele passa a ter sentido por ser produtivo. Nas próprias escolas, a criança vai sendo educada desde muito cedo para fazer atividades que inventaram ser produtivas, mas que na verdade em grande parte só fazem sufocar o tempo livre. Usar esse tempo para pensar e se deparar com suas questões subjetivas é quase um “estar sem fazer nada”.

Nessa lógica, as ações começam a só ter sentido se tiverem um objetivo específico. Aos poucos, as atividades que gostamos de fazer e que não possuem uma justificativa racional vão sumindo do dia a dia por parecer perda de tempo. O mais interessante é que dificilmente surge sentimento de culpa quando fazemos o que não gostamos, mas somos racionalmente produtivos; enquanto que, ao fazermos algo que gostamos e não somos tão “produtivos”, nasce mais facilmente o sentimento de culpa, mesmo sendo uma atividade extremamente prazerosa.

De repente, o indivíduo não sabe nem dizer o que está lhe causando tristeza ou sensação de vazio. Tem uma casa boa, um trabalho bom, estabilidade financeira, mas o incômodo existencial persiste, ainda que racionalmente não haja motivo para esse desânimo. A razão forneceu alternativas mobilizando o indivíduo a buscar atividades que preenchessem o tempo dito improdutivo na tentativa de sanar um buraco que não pode ser fechado dessa forma.
E de que forma então se resolve esse problema?

Saindo do escravismo da razão. Diferente do que Descartes postulou no séc. XVI, a racionalidade não consegue ser a única resposta para o entendimento humano da realidade. O tempo produtivo, no modo como foi colocado ao longo da história, tentou objetivar e dar sentido a ações que nem sempre conseguem ser significadas pela razão. O homem buscou tanto se destacar dos outros animais através da racionalidade que deixou de perceber que também é um ser emocional.

Se for parar para pensar, os outros animais não têm problemas com questões existenciais e se satisfazem simplesmente em ser. No homem, as emoções foram sendo afastadas de modo que o ter ganhou destaque em relação ao ser, e isso provocou uma ruptura nos processos de subjetivação para a espécie. É tanto que muitas pessoas se incomodam de dar espaço para o tempo livre, pois se deparam com a fragilidade de sentido que têm a própria vida que foi construída; buscam justificativas para o que fazem e não se permitem simplesmente viver alguma coisa.

Ainda que a razão tenha possibilitado o progresso da humanidade em vários sentidos, pode-se pensar: o quanto custa ainda hoje esse chamado progresso? Qual o sentido que cada um de nós tem dado a vida? A racionalidade talvez tenha se demonstrado não tão inteligente quanto se pensava ser.

Enquanto tivermos a necessidade de sufocar nosso tempo subjetivo nos afastando do real sentido que temos dado a vida, seremos escravos da razão. Ainda que insistamos nisso, o homem não é só racional e ignorar o aspecto emocional pode significar uma ruptura existencial tão drástica que será necessário no mínimo uma agenda lotada para fugir da falta de sentido que a vida adquiriu.

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